Mil Paltôs. De Gilles Deleuze e Félix Guattari
Em um trecho da obra os autores fazem uma interessante comparação entre o Xadrez ao Go. O texto já suscitou acalorados debates entre jogadores!
“As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza interior ou
propriedades intrínsecas, de onde decorrem seus movimentos, suas
posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é
sempre um cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um fuzileiro.
Cada uma é como um sujeito de enunciado, dotado de um poder relativo; e
esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio
jogador de xadrez ou a forma de interioridade do jogo. Os peões do go,
ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja
única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: “Ele” avança,
pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. Os peões do go
são os elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado, sem
propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso as relações
são muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as
peças de xadrez entretêm relações biunívocas entre si e com as do
adversário: suas funções são estruturais. Um peão do go, ao contrário,
tem apenas um meio de exterioridade, ou relações extrínsecas com
nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha funções de inserção
ou de situação, como margear, cercar, arrebentar. Sozinho, um peão do
go pode aniquilar sincronicamente toda uma constelação, enquanto uma
peça de xadrez não pode (ou só pode fazê-lo diacronicamente). O xadrez é
efetivamente uma guerra, porém uma guerra institucionalizada, regrada,
codificada, com um fronte, uma retaguarda, batalhas. O próprio do go, ao
contrário, é uma guerra sem linha de combate, sem afrontamento e
retaguarda, no limite sem batalha: pura estratégia, enquanto o xadrez é
uma semiologia. Enfim, não é em absoluto o mesmo espaço: no caso do
xadrez, trata-se de distribuir-se um espaço fechado, portanto, de ir de
um ponto a outro, ocupar o máximo de casas com um mínimo de peças. No
go, trata-se de distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço,
preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já
não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem
destino, sem partida nem chegada. Espaço “liso” do go, contra espaço
“estriado” do xadrez. Nomos do go contra Estado do xadrez, nomos contra
polis. É que o xadrez codifica e descodifica o espaço,enquanto o go
procede de modo inteiramente diferente, territorializa-o e o
desterritorializa (fazer do fora um território no espaço, consolidar
esse território mediante a construção de um segundo território
adjacente, desterritorializar o inimigo através da ruptura interna de
seu território, desterritorializar-se a si mesmo renunciando, indo a
outra parte…). Uma outra justiça, um outro movimento, um outro
espaço-tempo.”
Fonte: http://www.paulistagocenter.com.br/textos-sobre-go/mil-platos.html#more-146
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